Conto | Alicerce

 


Alicerce, um conto de Thaisa Lima.

― Kom Kyk.

O negro suado, trajando apenas uma calça surrada de algodão cru, me encarava com olhos injetados de medo. Era possível ver as finas veias arroxeadas, convergindo para diferentes direções, em seu globo ocular amarelado. O homem respirava com dificuldade, gesticulando e apontando para uma trilha no meio da mata. Um relâmpago rasgou o céu e segundos depois, o barulho assustador. Senti um cheiro de ozônio forte e meu corpo convulsionou em pequenos arrepios.

― Kom Kyk! Kom Kyk! ― gritava, desesperado.

― Eu não compreendo o que você fala. ― gritei, tentando me fazer ouvir em meio ao precipitar turbulento da forte chuva que havia começado. O céu cada vez mais escuro, anunciava os primeiros minutos da noite tempestuosa. 

Olhei para os lados e não consegui reconhecer o lugar em que estávamos, apesar da leve sensação de familiaridade provocada por aquelas árvores imensas. A água gelada batia forte contra meu corpo me fazendo tremer de frio. O negro, exasperado e sem saber mais o que fazer para ser compreendido, agarrou o meu pulso, me puxando mata a dentro. Tentei me soltar, me debatendo, mas sua mão parecia uma prensa, me apertando cada vez mais forte, sempre que eu tentava escapar. Gritei, me debati, enfiei minhas unhas em sua carne dura até sentir o líquido quente entre meus dedos, mas ele não me largou. 

― Kom. ― Apontou um dedo para frente e falou com dificuldade, algo parecido com nojo em seu tom de voz. ― V-ver.

Seu olhar estava tão assustado quanto o meu, então compreendi que ele queria apenas que eu o seguisse para mostrar algo aterrorizante. Parei de me debater e o acompanhei. Andamos por alguns minutos na densa mata, pisando em galhos e folhas mortas. A luz do dia se esvaiu rápido e os únicos clarões eram proporcionados pelos raios cortando o céu. Eu estava aterrorizada mas por algum motivo confiava no homem forte de semblante sofrido à minha frente.

― Onde você está me levando?

― Xiii ― Colocou o indicador nos lábios, me pedindo para fazer silêncio e abriu caminho entre cipós e folhas, desembocando em uma clareira. O terreno parecia ter sido escavado, pois montes de terra estavam empilhados ao lado dos buracos.

― Onde nós estamos? ― Não reconheci o lugar mas continuei com a sensação de já ter estado ali.

― Kom. Kyk wat op die vloer van u huis is. ― O olhei com um olhar interrogativo, sem compreender nada do que havia falado. Ele tocou com o dedo indicador no centro de minha testa e senti uma descarga elétrica percorrer todo meu corpo. Sua fala fez eco dentro de minha cabeça e pude compreender o significado dessa língua até então desconhecida. ―  Vem. Veja o que tem no solo da sua casa.

― Minha casa? Estamos em uma clareira, como isso pode ser minha casa?

― Vem! 

Ele agarrou novamente o meu pulso, me puxando para perto dos montes de terra e, como mágica, um relâmpago rasgou a noite, deixando o céu claro como o dia, e eu pude ver… A imagem bizarra penetrou meus olhos, invadindo o meu corpo com tamanha ferocidade, me fazendo vomitar. Corpos mutilados, de homens, mulheres e crianças negras, estavam amontoados e enfileirados, compondo toda a base do alicerce do que parecia ser a construção de uma casa. Um grito de dor morreu em minha garganta.

Acordei, ainda sentindo o cheiro de carne podre, com o corpo coberto de suor e a janela aberta batendo forte contra a parede me enlouquecendo. Lá fora, raios e trovões. 

O relógio pendurado marcava 00:01h.

Olhei para a porta fechada do meu quarto e vi uma sombra se afastando. O bebê voltou a chorar no quarto ao lado.

Não tenho coragem de levantar da cama, afinal, moro sozinha nesta casa.

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