O bilhete
Thaisa Lima
O barulho dos galhos batendo contra o vidro da janela é assustador. Os deuses parecem enfurecidos, despejando na terra, raios e uma chuva torrencial. Da cama, avisto a janela e garras com unhas pontiagudas, tentam quebrar o vidro. Existe um monstro lá fora, à espreita, tentando entrar para devorar a casca que me tornei. Não consigo dormir, estou apavorada. As noites são os piores momentos dentro desse inferno. Ele sempre aparece para me atormentar… Sinto que, lentamente, estou perdendo os últimos resquícios de sanidade. Quando pisei aqui pela primeira vez, senti um arrepio percorrer todo o meu corpo e gelei. Anos se passaram mas ainda sinto aquela sensação. Foi como uma premonição, algo me avisando que se eu entrasse na casa, jamais sairia viva dela.
Puxo a coberta até o meu queixo, ela deslizou com a tremedeira do meu corpo, e esse é o único movimento que consigo fazer antes do quarto ser tomado por um clarão e o vidro quebrar em mil pedaços. Quero gritar, mas minha garganta fechou, prendendo um grito mudo, quando vi a sombra sentando na poltrona, nos poucos segundos de claridade. Estendo a mão para o lado, tentando alcançar a garrafa de vinho pela metade que deixei no criado mudo. Minhas mãos tremem debulhando os comprimidos. Derrubei metade na cama, antes de conseguir engolir cinco, com a ajuda do vinho, tomado direto no gargalo. Sombras dançavam no quarto escuro. Meus olhos estão fixos na poltrona de frente para a cama, onde ele costuma sentar todas as noites, me olhando com um sorriso de dentes amarelados na boca, um lembrete de sua promessa…
Outro relâmpago. Clarão. Escuridão.
00:01h.
Todos os dias ele cumpre sua promessa, religiosamente no mesmo horário, exatamente como descreveu que faria no bilhete.
― Oi querida. Chegou o grande dia. ― Sorriu. ― Você lembra quando viemos morar nesta casa?
A voz doce de Natan me fez recordar daquele dia. Era uma tarde de verão quando ele abriu a porta da frente, carregando-me nos braços, e entramos pela primeira vez aqui. Compramos a casa em bom estado, por um preço insignificante, direto com a corretora. Estranhamos a pressa e o valor, mas aproveitamos. Fomos felizes por um ano, sonhando com a família numerosa que queríamos formar e, durante esse tempo, a casa se alimentou desses sonhos, até minha primeira gravidez chegar e tudo virar um pesadelo. Sofri um, dois, três, quatro, cinco abortos seguidos, todos no sétimo mês de gestação, de forma inexplicável. A cada perda, eu definhava, e Natan se entregava à bebida. O homem gentil e extrovertido desapareceu, e um trapo de homem tomou seu lugar, perambulando por entre os cômodos escuros desse túmulo. Todos os meus bebês foram enterrados no quintal. A noite, escuto o choro deles, mas nunca tive coragem de atendê-los. Natan também escutava, mas fingia não ouvir e me chamava de louca. Certa noite ouvi um tiro, corri e o encontrei na nossa biblioteca, com uma bala enfiada na cabeça. A arma estava caída no chão, ao lado do corpo pendendo na cadeira, e um bilhete, em cima da escrivaninha. Enterrei o corpo de Natan ao lado dos nossos filhos. O bilhete que ele deixou tem me atormentado, todas as noites, durante os últimos 7 anos:
Não se preocupe querida, jamais te deixarei. Me espere em nosso quarto todas as noites. Eu virei te buscar.
Com amor, Natan.
― Vamos, querida? ― Levantou-se e caminhou lentamente em minha direção. ― Nossos filhos querem abraçar a mãe.
***
Depois da longa tempestade que assolou a cidade, uma matéria estampava a primeira página do jornal, entregue naquela manhã fria de domingo:
EXTRA! EXTRA! MISTÉRIO DO CASARÃO.
Mulher é encontrada morta, com um tiro na cabeça, em sua própria cama. A princípio, a polícia suspeitou de suicídio, visto que ela era a única moradora da casa, seguindo essa linha de investigações. Após análise mais apurada da perícia, descartaram a hipótese, pois o local onde a arma foi encontrada, mostrou ser impossível o cadáver ter desferido o golpe contra si mesmo. A perícia também encontrou várias ossadas, dentre elas a de 5 crianças, enterradas no quintal. A polícia investiga o caso e suspeita de…
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