Diário | Causos da Madrugada

 

 

Diário


“Não importa o quão insano você é. Existe sempre alguém para completar a sua insanidade.”

Arlequina


Entrada 1


― Ei.

A voz estava longe, um eco carregado pelo vento. Virei para o lado, ignorando-a.

― Ei! Não tá me escutando?

O estranho gritou, um leve desespero em seu tom de voz.

― A gente precisa conversar. ― insistiu.

Ele sussurrou, o hálito quente roçando em minha orelha. Abri os olhos depressa, o sono desaparecendo por completo ao lembrar que moro sozinha nesse apartamento. Procurei o dono daquela voz grossa. Não achei. Olhei para o lado direito, o relógio sobre a mesinha de cabeceira marcava 3:33h. Levantei e levei meu notebook para a sala. Mais uma noite insone.


Entrada 2

Meu cachorro peida bem na minha cara. Acordo sufocada com o fedor, o nariz ardendo, lutando entre expelir e sorver o ar. Tusso, batendo a mão contra o peito para desengasgar. A fedentina é tão intensa que eu me pergunto se coloquei algo podre sem perceber misturado na ração. Lágrimas escorrem pelas minhas bochechas. Ouço risadinhas de criança e uma mulher sussurrando, pedindo para fazerem silêncio. Levo minhas mãos até as orelhas para conferir, os tampões de ouvido ainda estão no mesmo lugar. Mas como…? Acendo o abajur às pressas, procurando por intrusos em meu quarto. Nada. A tela do relógio pisca, marcando 3:33h.


Entrada 3

Meu psicólogo riu da minha cara na última sessão. É isso que dá ser amiga de infância da pessoa que deveria te ajudar a resolver os seus problemas. Contei para ele que todos os dias, religiosamente às 3:33h da madrugada, sou assombrada por pessoas que desaparecem assim que abro meus olhos. Ele me chamou de louca, se gabou que eu ainda daria muito dinheiro para ele com a terapia e me sugeriu mudar meu gênero de escrita para algo relacionado ao sobrenatural. Gostei da sugestão.

Hoje eles não me acordaram, eu já os esperava com os olhos bem abertos.


Entrada 4

― É o seguinte: o próximo que me acordar 3:33h da manhã vai morrer. ― gritei, contrariada.

Todos arregalaram os olhos e taparam a boca com as mãos. Bati o pé no chão, enfatizando meu descontentamento. As meninas se esconderam atrás da cortina, seus corpinhos desapareceram dentro do tecido. Otávio e Caio ficaram inquietos, mudando o peso do corpo de uma perna para a outra, me olhando com frustração. Miguel, Vinícius, Marcelo e Samuel aproximaram-se de suas mulheres, balançando a cabeça de um lado para o outro, implorando, em silêncio, para não dizerem nada.

― Mas nós queremos… ― Suzana começou a falar, mas parou ao ver meu olhar assassino. Segurei a caneta contra o papel e isso pareceu atormentá-la. Sorri, satisfeita.

― Estão avisados. O próximo que não me deixar dormir, irá morrer. E não adianta tentar me enganar. ― cuspi as palavras e me joguei na cama, fechando os olhos.

Eles foram embora, cabisbaixos. Tentei dormir mas o sono deu adeus junto com eles. Levantei, peguei o notebook, decidindo qual seria o primeiro da lista a ter uma morte lenta e dolorosa. Fui para a sala.


Entrada 5

― Você não pode fazer isso comigo! ― implorou, esperando que eu mude de ideia. O choro se derrama em soluços profundos, as lágrimas misturando-se com o líquido viscoso que escorre pelo nariz.

― Posso, sim.

― O que eu fiz para merecer morrer? ― Caio encolhe-se no canto da parede, as pernas dobradas, coladas ao peito. Abraça os joelhos com força e encosta a cabeça nos braços.

― Além de me acordar ontem às 3:33h? A lista dos seus pecados é infinita, querido. ― respondi com desdém. Tomo um gole do vinho e trago lentamente o meu cigarro, soltando a fumaça pelo nariz. Posiciono meus dedos em cima do teclado e começo a escrever.

― Por favor, não faça isso... ― implorou novamente. Finjo estar sozinha na sala, sem dar atenção aos seus lamentos e continuo a escrever. ― Você vai se arrepender, vadia! ― esbravejou, irritado por não conseguir me convencer. Com o cigarro entre os dedos, aponto para ele, balançando a mão.

Dou uma última olhada no homem ajoelhado à minha frente e volto a escrever, sentindo uma enorme satisfação ao fazê-lo, sem me importar com a ameaça, os detalhes cruéis de sua morte prematura. O relógio marca 3:33h da manhã.


Entrada 6

As vozes sumiram. Após a morte do Caio, eles pararam de me acordar de madrugada. Por coincidência, não consigo escrever desde então. Estou amaldiçoada com a síndrome da folha em branco.


Entrada 7

3:33h

― Ei, onde vocês estão? ― sussurro para a penumbra, minha voz soa suplicante.

Paro de contar após beber a vigésima xícara de café e perco as contas. O leve tremor em minhas mãos indica que bebi além do que deveria. Ando em círculos pelo quarto. A tela com a página em branco, brilhante, aberta no notebook em cima da mesa, me atormenta e junto com a superdosagem de cafeína, me faz perder o sono completamente.

Guimbas de cigarro se amontoam dentro do cinzeiro, ao lado do monstro reluzente. O silêncio é ensurdecedor.

Pego o caderno e uma caneta, esperando encontrar a inspiração ao voltar às origens, mas só consigo outra folha em branco.

O que foi que eu fiz?


Entrada 8

Estou há duas semanas sem escrever uma linha. Sigo com insônia, dormindo apenas 3h e 33 min por dia.

― Por favor, apareçam! ― imploro.

A minha voz ecoa pela sala e em resposta, apenas o silêncio.


Entrada 9

Dois meses sem escrever. Meu desespero é real! Uma pilha de boletos vencidos se acumula sobre a mesa. Preparo o último miojo que havia no armário e como no jantar. A ração do Sansão acabou, a despensa está vazia e esse mês eu só recebi R$50,00 com a venda dos meus livros na Amazon. Preciso lançar algo novo com urgência…

Resolvo apelar.

― Tudo bem, eu vou reviver ele. ― falei para o vazio.

Silêncio.

― Apareçam, por favor! ― gritei. Encosto na parede e deslizando até o chão, cubro o rosto com as mãos para esconder minhas lágrimas.

― Você promete? ― O sussurro saiu de trás da cortina. Meu coração dá um pulo e se enche de esperança.

― Sarinha! ― Levanto em um salto. Corro até a pequena menininha. ― Se vocês voltarem, eu prometo não matar mais ninguém.

Ela sorri, seu sorriso ilumina a sala escura, e se joga nos meus braços. Aos poucos, os outros aparecem.

De um por um, eles me contam suas histórias. Sento em frente à mesa, abro o notebook e, finalmente, após meses com bloqueio criativo, volto a escrever.

“Eles acharam que o corpo abandonado no lixão era o de um homem morto, mas Caio sobreviveu e voltou dos mortos disposto a se vingar.”




FIM


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