Conto | Abayomi

 


Abayomi

Um conto de Thaisa Lima

Um grito assustador quebrou o silêncio da noite e fez meu sangue gelar dentro das minhas veias. O barulho parece vir das colinas, onde o cemitério em ruínas se encontra.  Me enfiei um pouco mais dentro do apertado buraco na parede do sótão, o meu corpo tremendo, descontrolado. Minhas costas estão quase fundindo-se ao carrasquento reboco, uma mistura de terra preta com algum material identificável. O lugar exala um odor pútrido. Puxo minhas pernas dormentes contra o peito, arrastando com  dificuldade os meus pés. Me encolhi o máximo que pude para caber no minúsculo espaço. É difícil respirar com o corpo todo dobrado e sinto estar prestes a perder os sentidos. Estou sozinha nesta casa velha há uma semana, meus parcos suprimentos de comida acabaram e fazem dois dias que estou sem comer. A água da torneira fede a sangue e lodo, não consigo beber sem vomitar tudo em seguida. Ouço outro grito e encolho-me ainda mais, fechando os olhos, como se isso a fizesse desaparecer.

Eu não queria essa casa. Quando o advogado leu o testamento, recusei de imediato, mas o meu tio avô deixou uma cláusula proibindo a venda. Eu não podia me desfazer desse maldito casarão velho, então eu simplesmente o deixei apodrecendo, abandonado. As histórias sobre esse lugar assombrado me atormentavam desde a infância, porém, não tive escolha e acabei me escondendo aqui. Se eu soubesse o que iria acontecer...Era melhor ter ido morar na rua. Perdi tudo naquele  jogo, o dono do cassino me deu o prazo de um dia para pagar a dívida ou ele me mataria. Precisei me esconder e acabei aqui. 

As paredes dessa casa emanam uma aura sombria, como se alguma coisa espreita nas sombras. Desde o primeiro momento em que meus pés entraram pela porta, tive a sensação de estar sendo observada. Uma sensação sufocante. Era final de tarde quando cheguei e bastou a noite cair para eu conhecer o inferno. Os gritos começaram distantes, vindos das ruínas na colina, e a cada dia se aproximam mais da casa. O único lugar onde me senti segura foi o porão.   

Aqui não tem eletricidade e meu celular descarregou sem eu notar, assim como a bateria extra, uma semana atrás. Percebi tarde demais. Quando escureceu, as sombras ganharam vida, passeando pelas paredes, emitindo gemidos assustadores. Tentei fugir, corri desesperadamente para a porta, mas alguma coisa agarrou meus pés e me arrastou pela sala. Fui arremessada contra a parede e desmaiei ao bater a cabeça. Acordei não sei quanto tempo depois no meio da cozinha e tentei fugir novamente. Cheguei até a porta da entrada sem dificuldade, mas quando tentei abrir ela estava trancada. Me desesperei, chutei com todas as minhas forças mas nada aconteceu. Isso deveria ser impossível, a madeira podre  pode quebrar com um simples sopro, mas ela parecia resistente como o ferro. Estou presa aqui dentro desde então.

Não durmo e não como há dias. Meu corpo não suporta mais. A mulher ensandecida grita lá fora, agora eu consigo entender o que ela fala, tão perto se encontra. Ela chama por um nome. 

Algo caiu na cozinha. Um baque surdo invade meu esconderijo. Ouço um vidro quebrar. Aperto mais forte os meus olhos, o coração acelerado, confundindo meus sentidos. Meus dentes se chocam um contra o outro, tilintando, levo as mãos até minha boca, para abafar o barulho.

― Abayomi

O grito explodiu em meus ouvidos, quase estourando meus tímpanos e eu abri os olhos, assustada. Um feixe de luz atravessou a escuridão, vindo da porta que se abriu no alto da escada e eu vi pela primeira vez a parede à minha frente. Eram manequins?  Estreitei os olhos para enxergar melhor. Não eram manequins, eram meninas vestidas como bonecas dentro de uma espécie de caixa coladas na parede e dentre elas o nome Abayomi jazia em cima de uma caixa vazia. 

Um arrastar de pés desceu pelas escadas. Me encolhi e fechei os olhos. O ar gelou ao meu redor e um frio congelante invadiu meu corpo me fazendo estremecer. Uma mão segurou em meu pescoço e me puxou do buraco. O mundo girou. Eu não consigo respirar, sufocada pela mão de torniquete apertando meu pescoço e antes de tudo escurecer vi o desespero e a loucura nos olhos fantasmagóricos, sem vida, me encarando.  Meus pulmões gritam por ar. Tentei me soltar, em vão. Meu corpo fraco se entregou ao pavor, rendendo-se ao inevitável.  

― Vamos brincar? ― O sorriso macabro da menininha com roupas esfarrapadas foi a última coisa que eu vi antes de mergulhar no vazio.


Confira também:


Comentários

  1. Angustiante é uma boa palavra para descrever esse conto! Você consegue se levar pelo medo crescente da personagem e sente, assim como ela, o terror que se aproxima. Ótimo conto!!!

    ResponderExcluir

Postar um comentário